terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Aprender História: estudar, ensinar.




José Mattoso, A Função Social da História no Mundo de Hoje

“ (…) De facto, ao contrário de outras áreas do saber, que só preparam para dar respostas técnicas e unilaterais, do ponto de vista da informação necessária, a História prepara para considerar questões complexas, isto é que têm em conta uma grande quantidade de factores, pelo simples facto de se basearem em condições históricas, com tudo o que elas têm de determinante ou de condicionante.
(…) A História oferece, quando abre os seus horizontes às dimensões do mundo e da Humanidade, uma visão ampla e diversificada da sociedade, não tanto de um ponto de vista estático, mas sobretudo, como é evidente, do ponto de vista temporal e dinâmico. Habitua a olhar para todos os acontecimentos como resultantes de causas e de condições muito variadas e que se conjugam, a uma certa escala, de maneira aleatória, mas que também se organizam, a outra escala (digamos, a uma escala superior), segundo linhas de força suficientemente visíveis e racionais para que a sua descoberta seja parte essencial da sua explicação ou da descoberta do seu sentido global. Habitua a descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças e das doutrinas, e a detectar por que razão, sob aparências diferentes, se voltam a repetir situações análogas, se reproduz a busca de soluções parecidas ou se verificam evoluções paralelas. O historiador está sempre a descobrir no passado longínquo e recente o mesmo e o outro, a identidade e a variância, a repetição e a inovação.
(…) Há, porém, razões mais profundas para insistir na utilidade da História não só para a sociedade actual, mas para a sociedade de qualquer época. Para quem pense que no mundo de hoje se tem em pouca conta a tradição (o que, em parte, é verdade), lembro que apesar de a História não ter nenhum valor produtivo por si mesmo, se gasta imenso dinheiro em pesquisar o passado, aplicando à sua investigação técnicas sofisticadas e dispendiosas a que muitos historiadores se consagram a vida inteira, renunciando a prazeres, a afectos e até a necessidades. (…) os testemunhos do passado consideram-se património público pelo qual o Estado tem obrigação de zelar cuidadosamente, numa responsabilidade que os cidadãos partilham como dever cívico fundamental.
Tudo isto mostra que a nossa época, mesmo se pouco respeitosa de tradições, preserva o conhecimento e a compreensão do passado como um valor fundamental. Este fenómeno está ligado, creio eu, a uma associação fundamental do culto da memória com a luta pela sobrevivência. De facto, a História não pode deixar de presidir às manifestações mais importantes da cultura de qualquer sociedade, porque o homem tem necessariamente de viver no tempo. Ora a vivência do tempo está dependente da memória. Não, é claro, da memória concreta, que é também comum aos animais superiores, mas da capacidade de recordar e de evocar o passado de maneira abstracta, que é própria do homem. Além disso, o homem não recorda apenas o seu próprio passado individual, mas também o alheio, sobretudo o da colectividade em que está inserido. É a memória que permite a reconstituição global e retrospectiva do passado. Registada em suportes perduráveis pela escrita, torna-se um património comum, uma memória colectiva. Os grupos humanos cultivam-na como expressão da sua própria continuidade e permanência, ou seja, como um fio que a morte dos seus membros individuais não consegue romper: os membros morrem, mas o grupo permanece. Recordar o passado colectivo é, portanto, uma forma de lutar contra a morte. Daí que a história comum seja tão importante para qualquer sociedade.
A memória que liga entre si os factos do passado individual ou colectivo constitui também o fundamento da consciência da identidade: o relato das acções do mesmo sujeito em momentos sucessivos da sua existência demonstra a sua capacidade de superação do tempo. Guardar a memória do agir colectivo, corresponde, portanto, a demonstrar que o grupo existe, isto é que não é um mero agregado de indivíduos, que se pode distinguir de outros grupos, que mantém a sua coerência, que é capaz de vencer ataques externos ou dificuldades internas, e de subsistir como suporte dos indivíduos que o compõem.
(…) Ora quanto mais vastos são os horizontes da História dos vários grupos a que o sujeito pertence – a família, o sector profissional, a classe social, a cidade, a região, o país, o continente, a humanidade inteira – mais o seu conhecimento lhe permite apreender as dimensões espaciais e temporais de cada um deles e as relações que os unem entre si ou separam uns dos outros. Assim, a História contribui mais do que muitos outros saberes para se adquirir a noção de infinita complexidade das formas de sociabilidade pelas quais o homem se foi adaptando ao mundo, da relatividade das soluções encontradas através dos tempos pelas diversas culturas na sua relação com a Natureza.”

Excertos do Texto apresentado na abertura do ano académico de 1998-1999 (15 de Outubro de 1998) da licenciatura em História na Faculdade de Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e editado pela APH (Associação de Professores de História) em 1999.



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