Aprender História: estudar, ensinar.
“ (…) De facto, ao contrário de outras áreas do saber, que só
preparam para dar respostas técnicas e unilaterais, do ponto de vista da
informação necessária, a História prepara para considerar questões complexas,
isto é que têm em conta uma grande quantidade de factores, pelo simples facto
de se basearem em condições históricas, com tudo o que elas têm de determinante
ou de condicionante.
(…) A História oferece, quando abre os seus horizontes às
dimensões do mundo e da Humanidade, uma visão ampla e diversificada da
sociedade, não tanto de um ponto de vista estático, mas sobretudo, como é
evidente, do ponto de vista temporal e dinâmico. Habitua a olhar para todos os
acontecimentos como resultantes de causas e de condições muito variadas e que
se conjugam, a uma certa escala, de maneira aleatória, mas que também se
organizam, a outra escala (digamos, a uma escala superior), segundo linhas de
força suficientemente visíveis e racionais para que a sua descoberta seja parte
essencial da sua explicação ou da descoberta do seu sentido global. Habitua a
descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças e das doutrinas, e
a detectar por que razão, sob aparências diferentes, se voltam a repetir situações
análogas, se reproduz a busca de soluções parecidas ou se verificam evoluções
paralelas. O historiador está sempre a descobrir no passado longínquo e recente
o mesmo e o outro, a identidade e a variância, a repetição e a inovação.
(…) Há, porém, razões mais profundas para insistir na
utilidade da História não só para a sociedade actual, mas para a sociedade de
qualquer época. Para quem pense que no mundo de hoje se tem em pouca conta a
tradição (o que, em parte, é verdade), lembro que apesar de a História não ter
nenhum valor produtivo por si mesmo, se gasta imenso dinheiro em pesquisar o
passado, aplicando à sua investigação técnicas sofisticadas e dispendiosas a
que muitos historiadores se consagram a vida inteira, renunciando a prazeres, a
afectos e até a necessidades. (…) os testemunhos do passado consideram-se
património público pelo qual o Estado tem obrigação de zelar cuidadosamente,
numa responsabilidade que os cidadãos partilham como dever cívico fundamental.
Tudo isto mostra que a nossa época, mesmo se pouco respeitosa
de tradições, preserva o conhecimento e a compreensão do passado como um valor
fundamental. Este fenómeno está ligado, creio eu, a uma associação fundamental
do culto da memória com a luta pela sobrevivência. De facto, a História não
pode deixar de presidir às manifestações mais importantes da cultura de
qualquer sociedade, porque o homem tem necessariamente de viver no tempo. Ora a
vivência do tempo está dependente da memória. Não, é claro, da memória
concreta, que é também comum aos animais superiores, mas da capacidade de
recordar e de evocar o passado de maneira abstracta, que é própria do homem.
Além disso, o homem não recorda apenas o seu próprio passado individual, mas
também o alheio, sobretudo o da colectividade em que está inserido. É a memória
que permite a reconstituição global e retrospectiva do passado. Registada em
suportes perduráveis pela escrita, torna-se um património comum, uma memória
colectiva. Os grupos humanos cultivam-na como expressão da sua própria continuidade
e permanência, ou seja, como um fio que a morte dos seus membros individuais
não consegue romper: os membros morrem, mas o grupo permanece. Recordar o
passado colectivo é, portanto, uma forma de lutar contra a morte. Daí que a
história comum seja tão importante para qualquer sociedade.
A memória que liga entre si os factos do passado individual
ou colectivo constitui também o fundamento da consciência da identidade: o
relato das acções do mesmo sujeito em momentos sucessivos da sua existência
demonstra a sua capacidade de superação do tempo. Guardar a memória do agir
colectivo, corresponde, portanto, a demonstrar que o grupo existe, isto é que não é um mero agregado de indivíduos, que se
pode distinguir de outros grupos, que mantém a sua coerência, que é capaz de
vencer ataques externos ou dificuldades internas, e de subsistir como suporte
dos indivíduos que o compõem.
(…) Ora quanto mais vastos são os horizontes da História dos
vários grupos a que o sujeito pertence – a família, o sector profissional, a
classe social, a cidade, a região, o país, o continente, a humanidade inteira –
mais o seu conhecimento lhe permite apreender as dimensões espaciais e
temporais de cada um deles e as relações que os unem entre si ou separam uns
dos outros. Assim, a História contribui mais do que muitos outros saberes para
se adquirir a noção de infinita complexidade das formas de sociabilidade pelas
quais o homem se foi adaptando ao mundo, da relatividade das soluções
encontradas através dos tempos pelas diversas culturas na sua relação com a
Natureza.”
Excertos do Texto apresentado na abertura do ano académico de
1998-1999 (15 de Outubro de 1998) da licenciatura em História na Faculdade de
Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e editado pela APH (Associação
de Professores de História) em 1999.
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